Entro em uma das unidades da Livraria Cultura de São Paulo e peço ao vendedor o novo livro de Sophia de Mello Breyner Andresen. O nome não chama a atenção do jovem barbudo, que corre ao computador e pergunta: “Como é mesmo?”. Eu começo a soletrar S-O-P-H-I-A.
E então o rosto do rapaz se ilumina: “Ah, sim!” Ele desaparece entre as estantes e volta com o meu pedido, exclamando, num entusiasmo brejeiro: “Um livraço, um livraço!”.
Assim chega às minhas mãos a antologia da Companhia das Letras com a foto da bela autora na capa: “Sophia de Mello Breyner Andresen: Coral e Outros Poemas”. O livro é um apanhado do desenvolvimento artístico da poetisa em ordem cronológica, com escritos que vão dos anos 1940 até os póstumos. A seleção coube ao prestigiado poeta carioca Eucanaã Ferraz, que cumpre a empreitada com esmero e apresenta uma introdução essencial para os leitores brasileiros.
Há tempos a escrita de Sophia merecia um lançamento no Brasil mais de acordo com o prestígio que ela angariou em Portugal, onde morei uns anos. Em seu país,a escritora é famosa tanto pela obra poética como por títulos infantis, como os clássicos “A Fada Oriana” e “A Menina do Mar”.
Na poesia portuguesa, Sophia consagrou-se como um dos nomes mais importantes do século 20. Nada mal para um país de tantos gênios poéticos, como Luís Vaz de Camões e Fernando Pessoa.
Segundo Eucanaã, já no título de estreia, aos 25 anos (“Poesia”-1944), a autora demonstra uma escrita madura. A mesma voz, cheia de musicalidade, coerência e integridade. prossegue do primeiro ao último trabalho. Ao contrário de Fernando Pessoa, poeta de heterônimos e vozes múltiplas, Sophia sabia habitar uma mesma casa poética.
A mitologia grega, a cristandade, a noite e a natureza são alguns de seus temas recorrentes. Mas foi observando o mar, um dos temas mais importantes do imaginário do país de navegantes, que a poetisa compôs seus versos mais belos, alguns marcados pela “contenção e brevidade”, como nota Eucanaã, para quem o pequeno poema “Coral” (1950) é uma verdadeira “joia”:
“Ia e vinha
E a cada coisa perguntava
Que nome tinha”.
Sophia tinha enorme interesse pelo Brasil e seus escritores. Visitou o nosso país uma única vez, em 1966, passando por diversas cidades. O livro “Geografia” (1967) tem quatro poemas sobre o Brasil, todos incluídos na edição da Companhia das Letras.
Eucanaã Ferraz publicou um estudo sobre a presença de Sophia em terras brasileiras na revista Piauí 159 (dezembro de 2019), um artigo obrigatório tanto para os leitores interessados em conhecer a escritora como para os já iniciados. Ali, o escritor demonstra como a viagem deixou marcas poderosas na memória e na escrita posterior da autora.
Sophia escreveu no lúdico “Poema de Helena Lanari” um pouco do que pensava sobre o Brasil, observando a fala da amiga brasileira.
“Gosto de ouvir o português do Brasil
Onde as palavras recuperam sua substância total
Concretas como frutos nítidas como pássaros
Gosto de ouvir a palavra com suas sílabas todas
Sem perder sequer um quinto de vogal
Quando Helena Lanari dizia o ‘coqueiro’
O coqueiro ficava muito mais vegetal”
Os temas brasileiros surgiram em seus textos muitas vezes. Foi próxima do poeta e diplomata João Cabral de Melo Neto, a quem admirava e que a inspirou a escrever “O Cristo Cigano”, de 1961, poemas que reconstituem uma lenda espanhola contada a Sophia pelo próprio João Cabral quando se conheceram, em Sevilha.
Cecília Meireles, Murilo Mendes e Manuel Bandeira ganharam homenagens em seus escritos. Também conheceu Carlos Drummond de Andrade e Vinicius de Moraes.
“…Estes poemas poisaram a sua mão sobre o meu ombro
E foram parte do tempo respirado”, escreve ela, no poema em homenagem a Bandeira.
A antologia “Coral…” segue a estrutura da coletânea da “Obra Poética” publicada pela editora portuguesa Assírio & Alvim. E conclui-se com poemas dispersos (nunca antes reunidos em livro) e alguns inéditos.
Vale lembrar que a própria Companhia das Letras publicou “Poemas Escolhidos” da autora, em 2004. E a editora portuguesa Tinta da China lançou sua obra completa no Brasil em 2018.
Essas iniciativas são uma reparação para o relativo descaso com que os editores brasileiros vinham tratando o nome de Sophia por décadas a fio, ao mesmo tempo em que lançavam com estardalhaço autores da moda, que aos poucos foram sendo esquecidos. A escrita de Sophia vem sendo cada vez mais analisada e estudada nos países lusófonos desde sua morte, em 2004. E assim conclui Eucanaã: “…concreta, nítida, luminosa, a palavra de Sophia está entre nós.”
A edição desses trabalhos, ainda que tardia, pode vir a estimular a publicação de novos títulos da notável literatura portuguesa da segunda metade do século 20. Para o bem dos leitores deste lado do Atlântico, esperemos que assim seja.
Nota: Não deixe de ver e ouvir!
A cantora baiana Maria Bethânia, também apaixonada pelo mar, lançou em 2006 o álbum “Mar de Sophia”, em que homenageia a poetisa portuguesa. Bethânia insere os versos de Sophia entre as saudações aos orixás, como este:
“Quando eu morrer voltarei para buscar
os instantes em que não vivi junto do mar”
Fotos de Felizarda Barradas
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