Maior fenômeno literário do século XIX, A cabana do pai Tomás (1852) chegou aos nossos dias um pouco obscurecido, sendo mais comum encontrá-lo em versões adaptadas para o público infantojuvenil do que em seu texto original. No entanto, o romance da americana Harriet Beecher Stowe (1811-1896), publicado inicialmente em forma serializada na imprensa, não economiza esforços em produzir emoções, mesmo para os leitores de hoje. Com a história do escravo Tom – ou Tomás, como se consagrou traduzir no Brasil – se entrelaçam episódios de ação, humor e sentimentalismo, além do mais importante, sérias discussões sobre a escravidão. Foi afinal como marco do abolicionismo que A cabana do pai Tomás ganhou fama e proeminência, a ponto de alguns historiadores o apontarem como um dos deflagradores da Guerra Civil Americana (1861-1865), pelo papel de libelo que exerceu.
Para atualizar a obra e refletir criticamente sobre ela, a edição da CARAMBAIA traz, nos apêndices, um vasto material composto por artigos publicados na imprensa estrangeira e brasileira destacando a repercussão da obra. O dossiê foi organizado pelo historiador Danilo José Zioni Ferretti, professor da Universidade Federal de São João del Rei (MG), e é fruto de uma pesquisa desenvolvida em arquivos no Brasil, na França e em Portugal, como pós-doutorado na École des Hautes Études em Science Sociales, em Paris. O pesquisador também assina o posfácio da edição, na qual descreve o imenso impacto de A cabana do pai Tomás. Nos Estados Unidos e também na Europa e América do Sul, o romance chegou a provocar uma espécie de fenômeno de massa, com a proliferação de versões teatrais e circenses e produtos como pinturas, bibelôs e jogos infantis. O posfácio aborda a reação negativa imediata de escritores escravistas ao romance de Harriet Beecher Stowe e as diferentes estratégias antiescravistas que alimentaram o debate em torno dele. Nas críticas recebidas pelo livro no Brasil, não faltam comparações entre as condições de vida dos escravos norte-americanos e a realidade brasileira, de um cativeiro supostamente mais benévolo e humanitário.
A cabana do pai Tomás é também um marco histórico por ter sido escrito por uma mulher, fato menos comum no tempo de sua publicação, mas principalmente por trazer uma discussão sobre a questão feminina. Stowe, em sua argumentação de narradora e no modo como retrata suas personagens, permitiu às mulheres a reivindicação do lugar de intelectuais aptas a participar do debate político. Embora esse retrato seja moderado e mesclado com a conformidade aos padrões domésticos da época, foi o suficiente para despertar questionamentos, até mesmo em relação à adequação das mulheres ao papel de escritoras.
Harriet Beecher Stowe fundamenta a defesa da causa abolicionista em valores cristãos, amplamente evocados no decorrer do romance e formulados em tom fortemente moralizante. A escritora, nascida no estado de Connecticut, vinha de uma das famílias mais renomadas do protestantismo norte-americano. Seu pai era um expoente do calvinismo reformado, e o marido, Calvin Stowe, era teólogo e pregador. Harriet atuava como professora, escrevia inicialmente para o deleite limitado de seu círculo social, e foi mãe de sete filhos.
O que a fez colocar a escravidão no centro de seu interesse pessoal e literário foi a indignação com a aprovação, em 1850, da Lei do Escravo Fugitivo, que previa punição aos cidadãos que acolhessem escravos em fuga, mesmo nos estados “livres”, ao mesmo tempo em que facilitava os procedimentos jurídicos para seu reenvio aos proprietários do Sul escravista. Conhecida nos ambientes que frequentava por suas posições, Stowe aceitou o convite para publicar seu romance no jornal National Era, de linha abolicionista moderada (isto é, não aprovava estratégias confrontacionais).
Publicado em livro em 1852, o romance alcançou em menos de um ano a marca de 300 mil exemplares comercializados, quando a maioria não passava de 2 mil. Foi o livro mais vendido do século XIX e, entre todos os outros, só perdeu para a Bíblia. Nos estados do Sul a veracidade do romance foi frequentemente questionada, e alguns estados chegaram a proibir a circulação e a posse do volume. Escritores sulistas produziram mais de vinte romances “anti-Tom”. A autora, que já havia dedicado o último capítulo do romance a creditar suas fontes, escreveu um volume a respeito de todo o material em que se baseou para retratar a escravidão, de suas experiências pessoais a relatos de escravos publicados em livro. As restrições de que A cabana do pai Tomás foi alvo não lhe tiraram interesse. Na Inglaterra, o livro vendeu 1 milhão de exemplares antes de completar um ano de publicação, e em poucos anos houve traduções para dezenas de línguas. No Brasil, a primeira tradução saiu em 1893, mas a repercussão já vinha de décadas, graças à circulação de edições portuguesas.
Com o passar do tempo, em particular no auge da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, em meados do século XX, A cabana do pai Tomás passou a sofrer duras críticas dos líderes negros, por eleger como símbolo do abolicionismo um personagem submisso, passivo e idealizado ao ponto da santificação. Outros personagens também foram identificados com estereótipos da população negra. Dessa forma, o símbolo do abolicionismo do século XIX ficou, um século depois, marcado como um romance de traços racistas.
A edição da CARAMBAIA tem tradução de Bruno Gambarotto, doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), e projeto gráfico de Mateus Valadares, responsável também pelas ilustrações, baseadas em montagens de imagens produzidas para a primeira edição do romance e anúncios de jornais da época relacionados à procura e venda de escravos.
Tradução: Bruno Gambarotto
Posfácio: Danilo José Zioni Ferretti
Projeto gráfico: Mateus Valadares