Escritora foi militante contra o fascismo
Sophia, simplesmente Sophia. Em Portugal, até as crianças do ensino básico sabem de quem se trata. Consagrada em seu país, a escritora e poetisa Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto, 1919-Lisboa, 2004) é autora de clássicos infantis, como “A Fada Oriana” e “A Menina do Mar”, além de contos e ensaios. Seus poemas, traduzidos em muitas línguas, falam especialmente da natureza e do mar e tiveram reconhecimento tanto da crítica como do público.
Em 1999, ela se tornou a primeira mulher portuguesa a conquistar o prestigiado Prêmio Camões. Ao falecer, em 2004, já era considerada a maior voz feminina da poesia do século XX em Portugal. Em 2014, seus restos mortais passaram a integrar o Panteão Nacional, em Lisboa, e ela repousa agora ao lado de figuras históricas, como o navegante Vasco da Gama.
Bela e aristocrata, descendente de nobres portugueses e de dinamarqueses, Sophia nasceu no Porto e foi mãe de 5 filhos, entre eles o jornalista e escritor Miguel Sousa Tavares, autor do best-seller “Equador”. Foi desde sempre uma menina ligada ao mar, um tema sempre presente no imaginário português.
“Quando eu morrer voltarei para buscar
os instantes que não vivi junto do mar”.
Sophia foi também conhecida pela atuação política anti-fascista. Seus escritos e poemas deixaram para a posteridade um agudo senso de responsabilidade social e democrática.
Sophia tem sido praticamente desconhecida no Brasil, exceto nos meios literários. Seu prestígio na Europa parecia não ser suficiente para mobilizar os editores brasileiros, que vinham mostrando uma injustificável má vontade em relação a ela e a outros autores contemporâneos da lusofonia. O clássico infantil “A Menina do Mar”, escrito para os filhos de Sophia, somente chegou aos brasileirinhos em 2014 pela Cosac Naify, 56 anos após sua publicação em Portugal.
Finalmente, em 2018, a Companhia das Letras lançou a coletânea “Coral e Outros Poemas”, um apanhado do desenvolvimento artístico da autora, com escritos que vão de 1944 até os póstumos. A seleção ficou a cargo de outro importante poeta, o carioca Eucanaã Ferraz. A Tinta da China, editora de origem portuguesa, publicou no ano passado a antologia completa da autora para os leitores brasileiros. A edição de seus trabalhos, ainda que tardia, pode vir a estimular o lançamento de outros autores da notável literatura portuguesa da segunda metade do século 20, incluindo de uma das grandes amigas de Sophia, a escritora Agustina Bessa-Luís, falecida em 2019.
A terra do Brasil –
“Tenho uma apaixonada admiração pela poesia brasileira”, afirmou Sophia, na ocasião de sua única visita ao País. Em 1966, aos 46 anos, a poetisa chegou de Lisboa a convite do Itamaraty, numa jornada detalhada por Eucanaã Ferraz na revista Piauí de dezembro passado (número 159).
“Numa madrugada roxa de maio pisei religiosamente a terra do Recife”, escreveu ela, numa correspondência ao poeta João Cabral de Melo Neto, de quem era fã. Em cartas ao escritor e grande amigo Jorge de Sena, ela relata ter sido recebida “como uma irmã” pelos poetas Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Além de conhecer o Rio de Janeiro e as cidades históricas de Minas, a poetisa fez uma viagem de carro entre o Rio e Brasília. A então recém-nascida capital do Brasil foi assim descrita por ela no poema “Brasília”:
“Desenhada por Lúcio Costa, Niemeyer e Pitágoras
Lógica e Lírica
Grega e Brasileira
Ecumênica
Propondo aos homens de todas as raças
A essência universal das formas justas”.
Luta pela democracia –
A atuação política de Sophia foi uma atitude rara entre as mulheres de seu tempo e classe social. Ao lado do marido, o advogado e jornalista Francisco de Sousa Tavares, ela se opôs publicamente ao regime ditatorial de Antônio Salazar, líder do Estado Novo português entre 1933 e 1968, a quem chamava de “o velho abutre”.
“O velho abutre é sábio e alisa as suas penas
A podridão lhe agrada e seus discursos
têm o dom de tornar as almas mais pequenas”
Francisco foi preso pela temida PIDE, a polícia política de Salazar. Enquanto era monitorada pelo regime, Sophia ajudava os presos políticos, sem nunca abandonar a filosofia e a escrita. Juntamente com Jorge de Sena (poeta português exilado no Brasil), apoiou e editou autores censurados.
“Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo
Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa”
Graças à política, Sophia tornou-se amiga de Mário Soares, um socialista moderado que viria a se tornar o político mais importante de Portugal após o fim do salazarismo. Ao lado de Soares, Sophia e o marido Francisco tiveram participação ativa no movimento liberal que resultou na criação do Partido Socialista (PS), legenda de centro-esquerda que preside Portugal na atualidade.
Salazar faleceu em 1970, mas o fim do regime só se daria quatro anos depois. Os últimos anos da ditadura foram uma espécie de Vietnã português: por anos, militares lusos foram enviados para lutar contra os movimentos de independência das ex-colônias portuguesas africanas, na chamada Guerra do Ultramar.
A revolta dos militares portugueses e da população contra as guerras coloniais fez eclodir a Revolução dos Cravos em 25 de abril de 1974, pondo fim ao salazarismo. Até hoje, a cada celebração anual da data, os portugueses relembram o famoso poema de Sophia sobre o clima de liberdade nas ruas lisboetas no dia da queda do sucessor de Salazar, Marcelo Caetano.
“Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo.”
Sophia foi deputada pelo PS na Assembléia Constituinte formada em 1975, responsável por dar a Portugal uma nova Carta Magna. E se opôs à radicalização do regime de esquerda implantado após a revolução. Ao longo dos anos, porém, foi se afastando da política e também do marido, de quem se separou nos anos 80.
O filho Miguel Sousa Tavares disse que a poesia de sua mãe continua “deslumbrantemente atual”. Em tempos de grande agitação social e descrença nos regimes democráticos, os temas eleitos pela poesia atemporal de Sophia ganham ainda mais interesse.
Em vida, ela demonstrou coerência com s filosofia explícita em seus escritos: a defesa da liberdade, da justiça, da beleza artística e da natureza. Em tempos da era digital e do assombro da humanidade frente a uma pandemia de vírus, a última palavra continua sendo a do grande poeta.
Apesar das ruínas e da morte
Onde sempre acabou cada ilusão
A força dos meus sonhos é tão forte
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias
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Artigo brilhante!
Excelente artigo. Percebe-se a admiração da autora pela poesia e pela poetisa. Seguirei as próximas publicações.
Obrigada Renata por este artígo tão claro e didático sobre a Sophia.
Trabalho extraordinário.
Seu material é de uma profundidade surprendedora!
obrigada
Fabuloso!
Grata por trazer um conhecimento tão essencial, bem escrito e inteligente!
Fantástico! Eu ainda não havia encontrado um artigo tão completo e bem escrito sobre a Sophia. Descobri e apaixone-me pela poesia dessa portuguesa recentemente e sinto-me recompensado por esse texto, que tão bem dimensiona sua obra.
Excelente texto. Muito bem escrito e interessante. Parabéns!