O Herói Grego é, sem dúvida, um herói bélico: Héracles, Aquiles, Hector. Mesmo Odisseu, famoso por sua sapiência e sagacidade, era um exímio militar. Para quaisquer dúvidas de sua capacidade, os atos do meio para o final de Odisseu descritos na Odisseia desanuviam qualquer suposição contrária. Mas seria isto uma regra restrita, única?
Sófocles foi o mais prolífico dos escritores de tragédias gregas: 123 peças, das quais apenas 7 chegaram até nós (Ájax, Antígona, As Traquínias, Édipo Rei, Electra, Filoctetes e Édipo em Colono). Tendo falecido com 91 anos, foi o maior vencedor das Dionisíacas, com 24 concursos vencidos. Filoctetes é sua penúltima tragédia escrita, quando já contava com mais de 85 anos. Com isto, temos um autor em raro nível de maturidade escrevendo, o que é representado por um personagem consciente dos seus atos, sábio, sem desejos desnecessários.
Filoctetes é uma Tragédia distinta da concepção tradicional da palavra: não há um fato trágico em si. Não há um Édipo cegando-se ou um Ájax suicidando-se pulando em sua própria espada. A obra, que em muito mais se assemelharia a um Drama no sentido contemporâneo, narra a história do personagem-título que a caminho da Guerra de Troia, compunha o exército de Odisseu, Agamenon e Menelau. Durante a viagem a Troia, ele é abandonado sozinho em uma ilha após ter sido picado por uma cobra enquanto os Gregos tencionavam prestar homenagens a uma deusa local. Filoctetes não é abandonado por não ser uma pessoa desejada no exército, contudo deixam-no na ilha receosos do atraso na expedição militar. Porém, independente da motivação do seu abandono, o personagem remoerá ao longo dos anos o fato de terem relegado a ele uma vida solitária em uma ilha desconhecida.
Tendo habitado a ilha por 10 anos, Odisseu retorna para salvá-lo para que este os auxilie na guerra de Tróia, após a morte de Aquiles. A importância de Filoctetes se dá pelo seu Arco – presente de Hércules instantes antes da morte deste -, que teria sido objeto de uma profecia que os Gregos apenas venceriam a Guerra de Tróia com o auxílio do arco de Hércules. O ardil de Odisseu para recuperar Filoctetes consta em usar o filho de Aquiles, Neoptólemo, que deveria aliciar Filoctetes para que este se junte ao exército grego contra os Troianos.
Toda a narrativa se concentra nas tentativas – sequencialmente frustradas – dos gregos de conseguir convencer, e até mesmo sequestrar, Filoctetes. Porém este não se dobra aos desejos daqueles que o traíram. Odisseu é um personagem frequentemente odiado no mundo homérico: Ájax, por exemplo, quis assassiná-lo. Filoctetes não desejava reencontrá-lo.
Filoctetes é um exemplo – nos moldes gregos – de pessoa: reto, íntegro, que não abandona os seus ideias independente das promessas realizadas pelo grego a ele. O personagem vai, de fato, para a Guerra de Tróia. Porém, não sem antes ter feito valor a sua Ética e Moral. O Personagem é um Robinson Crusoé da antiguidade, que viveu de maneira autônoma ao longo de anos.
Se Antígona, de Sócoles, introduz um exemplo único de personagem feminino no universo grego, Filoctetes é outro exemplar de personagem atípico do mundo grego clássico. Apesar de suas habilidades militares, principalmente com arco e flecha, Filoctetes é imortalizado por sua retidão, por sua moral íntegra.
O mérito da obra vai além da própria qualidade de sua escrita. Filoctetes antecipa questões que serão pertinentes à Literatura do Séc. XIX, mais de 2.000 anos após a obra ter sido escrita e representada. Filoctetes representa o conceito do Realismo contemporâneo, do Homem versus Sociedade, daquele que confronta tudo e a todos por sua crença. A maior parte das tragédias, bem como de obras do período clássico, centram-se no homem versus homem, ou seja, o embate entre dois indivíduos em busca de algo. Filoctetes não; Filoctetes mantém-se contra a sociedade que deseja subverter os seus valores. Neste sentido, o personagem se aproxima muito ao Dr. Stockmann, personagem central de “Um inimigo do Povo”, de Henrik Ibsen.
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