A CARAMBAIA lança no Brasil uma nova tradução de Arquipélago Gulag, de Aleksandr Soljenítsyn (1918-2008), 46 anos depois de ser publicado na França num contexto de disputa política internacional. À época, suas qualidades literárias ficaram obscurecidas pelo vigor da denúncia da cruel realidade da rede de prisões políticas na União Soviética. A força da narrativa, que se baseia em parte na experiência do próprio autor, não seria a mesma sem a estrutura encontrada para torná-la ao mesmo tempo um relato memorialístico, uma história dos subterrâneos da Revolução Russa e uma reflexão filosófica, espiritual e política. Em resumo, uma obra que faz jus a seu subtítulo: Um experimento de investigação artística. Aos achados formais, como observa no posfácio o historiador Daniel Aarão Reis, somam-se “as variações de acento, de ênfase e de humor que transitam, quase sem solução de continuidade, entre sarcasmo e piedade, entre a quente indignação e a ironia fina”.
A edição da CARAMBAIA foi traduzida a dez mãos sob a coordenação de Lucas Simone, historiador e doutor em literatura russa. O texto é o da versão abreviada da obra, antes publicada em três volumes. O trabalho de redução foi feito pela esposa de Soljenítsyn, Natália, com acompanhamento e aprovação do autor, e publicado após sua morte, em 2010, em Moscou. “Estipulei como objetivo, enquanto resumia o volume o máximo possível, manter a estrutura, a arquitetura do livro”, diz no prefácio Natália Soljenitsyna. No mesmo texto ela recupera a aventura, com tons de thriller, da produção clandestina, contrabando e publicação no exterior de Arquipélago Gulag.
Aleksandr Soljenítsyn nasceu na cidade russa de Kislovodsk, entre os mares Negro e Cáspio. O pai, que morreu enquanto o futuro escritor ainda estava sendo gestado, era proprietário de terras e oficial do Exército Imperial russo. Convocado para lutar na Segunda Guerra Mundial, Soljenítsyn chegou a capitão de artilharia e recebeu condecorações por bravura. Em 1945, porém, foi preso depois da interceptação de cartas que escrevia a um amigo, nas quais ironizava o ditador Joseph Stálin. Apenas por isso ficou oito anos em prisões e campos de trabalhos forçados e mais três em exílio interno. Em 1956 foi autorizado a se estabelecer em Ryazan, na Rússia central, onde começou a escrever enquanto trabalhava como professor de matemática.
Soljenítsyn encaminhou para publicação, em 1962, o romance Um dia na vida de Ivan Deníssovitch, baseado em sua experiência de prisioneiro. Era uma descrição da rotina num campo de trabalhos forçados, em estilo claro e direto. Como ainda estava em vigor o período de abertura política anunciado pelo dirigente Nikita Khruschov em 1956, o romance pôde ser publicado sem censura, nas páginas da revista literária Nóvy Mir e depois em livro. Já se sabia das perseguições e prisões políticas, mas nunca haviam sido descritas com tanto realismo, e por um ex-prisioneiro, o que transformou Ivan Deníssovitch em fenômeno literário e acontecimento histórico, internamente e no exterior. Relatos da época descrevem pessoas disputando exemplares em livrarias e bancas de jornal das grandes cidades soviéticas.
Depois do golpe que derrubou Khruschov, em 1964, os escritos de Soljenítsyn foram recolhidos de bibliotecas e livrarias. O autor completou dois romances – O primeiro círculo e Pavilhão de cancerosos – que só conseguiu publicar no exterior. A KGB confiscou seus originais em 1965 e quatro anos depois ele foi expulso da União Nacional dos Escritores. Soljenítsyn ganhou o prêmio Nobel de Literatura em 1970, mas não foi buscá-lo na Suécia por receio de não poder voltar à Rússia.
Depois da publicação de Ivan Deníssovitch, o escritor havia recebido centenas de depoimentos de ex-prisioneiros dos gulags, que foram utilizados na construção de Arquipélago Gulag, mesclados a suas próprias memórias e uma reconstituição da história do sistema prisional, que, no auge do terror stalinista, abrigou cerca de 2,5 milhões de novos internos por ano. Soljenítsyn mostra que o complexo de instituições penais começou a ser construído ainda sob a liderança de Vladimir Lênin. O autor, que havia sido um entusiasta da Revolução Russa até sua primeira prisão, agora considerava que os abusos aos direitos humanos eram inerentes ao regime soviético. Arquipélago Gulag foi escrito em vários lugares, com trechos sendo datilografados por amigos, que Soljenítsyn microfilmou e conseguiu enviar ao exterior.
Depois da publicação do livro em Paris, no fim de 1973, Soljenítsyn foi preso e deportado para a Alemanha, onde havia recebido garantia de acolhida. A convite da Universidade de Stanford, mudou-se com a família para os Estados Unidos, estabelecendo-se em Cavendish, Vermont. No país, seu discurso mais célebre foi em Harvard em 1978, quando defendeu a monarquia czarista e as tradições russas, lamentou os hábitos dos jovens norte-americanos e condenou a “decadência moral” do Ocidente. Com essas opiniões, Soljenítsyn afastou os que esperavam dele uma defesa da democracia liberal. Ele concluiu e publicou nos Estados Unidos a tetralogia A roda vermelha, uma história da Revolução Russa. Soljenítsyn foi reabilitado às vésperas do fim da União Soviética (1991) e mudou-se para Moscou em 1994. Entre os livros publicados no fim da vida se encontra Reconstruindo a Rússia, uma coleção de propostas políticas.
A capa da edição da CARAMBAIA é do designer gráfico Mateus Valadares.
Tradução: Lucas Simone com Irineu Franco Perpetuo, Francisco de Araújo, Odomiro Fonseca, Rafael Bonavina
Posfácio: Daniel Aarão Reis
Capa: Mateus Valadares