Fernando Pessoa: O livro eterno dos desassossegados

por | 26/06/2020 | Destaque, Poesias, Lusofonia, Resenhas | 0 Comentários

Autor(es): Fernando Pessoa

Lançamento: 2017

Uma aventura sem igual no nosso idioma. Um livro inacabado e inacabável. A estética da fragmentação e da desconstrução elevada às últimas consequências. Uma obra-prima do modernismo literário.

O Livro do Desassossego, o diário de um empregado de um escritório de Lisboa, já foi descrito de inúmeras maneiras. Não é um romance e tampouco uma autobiografia, embora certamente contenha muito da intimidade do autor, Fernando Pessoa. Não é poesia. E tampouco é lido como prosa.

São páginas de inquietação existencial que levam a inúmeras reflexões. Traduzido em muitas línguas, o livro tem apaixonado gerações de leitores e certamente continuará a fazê-lo no futuro.

uma mão segurando o livro em primeiro plano com prateleiras repletas de livros ao fundo. A capa do livro tem uma foto do autor em preto e branco meio desfocada

Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa, em edição da Companhia das Letras, 2017.

Como se sabe, Pessoa foi muitos poetas num só. Sua criação literária se fez através dos heterônimos, personagens com vida própria, local de nascimento e biografia bem diferentes. No caso do Desassossego, os fragmentos em prosa são atribuídos principalmente (e não exclusivamente) ao heterônimo Bernardo Soares, um solitário e apagado guardador de livros, empregado de um escritório do centro lisboeta, um trabalho parecido com o do próprio autor.

Pessoa o considerava um semi-heterônimo, ou uma “mutilação” da sua personalidade. Soares era um homem que não dominava seus sentimentos e que nunca escrevia poesia, apenas prosa.

O pesquisador Richard Zenith, que assina a introdução da edição de 2017 da Companhia das Letras, afirma que muitas reflexões podem ser lidas como sendo do próprio Pessoa, mas faltam a Soares o bom humor e a personalidade forte do autor.

O primeiro texto atribuído ao projeto (“A Floresta do Alheamento”) foi publicado em 1913 na Revista A Águia, com a indicação: “Livro do ‘Desassossego’, em preparação”. E, de fato, Pessoa passou o resto da vida a prepará-lo, guardando metodicamente os fragmentos na sua famosa arca, muitas vezes com a indicação L. do D.

Em carta a um amigo, Pessoa afirmou: “… tenho elaborado várias páginas daquela produção doentia. A obra vai, pois, complexamente e tortuosamente avançando”.

A primeira parte do livro, escrita entre 1913 e 1920, tem trechos assinados pelo próprio Pessoa e pelo heterônimo Vicente Guedes. Bernardo Soares assina os trabalhos de 1929 até a morte do autor, em 1935.

Muitos trechos foram publicados em revistas. Um livro embrionário foi editado por Pedro Veiga, um estudioso português que assinava com o nome Petrus, em 1961. A primeira edição praticamente completa do Desassossego foi publicada pela Ática em 1982, quase 50 anos depois do falecimento do poeta, fruto do árduo trabalho dos pesquisadores Jacinto Prado Coelho, Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha.

O poeta português Jorge de Sena trabalhou muitos anos na compilação. Por estar exilado no Brasil, abandonou o projeto. Mas deixou um ensaio considerado essencial para o estudo da obra.

Como seria a publicação do “Livro do Desassossego” com aval e revisão do próprio Pessoa? Que forma teria, qual tamanho, quais trechos seriam expostos, quais outros seriam deixados de lado? Jamais saberemos. Fernando Pessoa escreveu o livro, mas nunca o teve em mãos.

Algumas edições trazem a narrativa por ordem cronológica. Outras organizam o texto conforme os temas. De toda forma, a prosa fragmentária permite a cada leitor encontrar a sua própria narrativa, que não necessariamente é a sugerida pelos organizadores.

Pelo tempo que vivi na cidade de Fernando Pessoa, posso garantir que a capital portuguesa é inequívoca personagem do Livro do Desassossego. O escritor faz uso da paisagem de Lisboa para exprimir reflexões filosóficas e seu estado de espírito, em geral angustiado. O Rio Tejo, as personagens dos cafés e escritórios da Baixa, as cores da cidade-aquarela, tudo isso compõe um diário da vida quotidiana lisboeta, em geral triste, mas sempre belíssimo.

Separei para vocês alguns trechos inesquecíveis do Livro do Desassossego:

“Matar o sonho é matar-nos. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso”

“A única realidade para mim são as minhas sensações. Eu sou uma sensação minha. Portanto, nem da minha própria existência estou certo”

“Haja ou não deuses, deles somos servos”

“Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens havia perdido a crença em Deus, pela mesma razão que seus maiores a haviam tido – sem saber porquê”.

“Nunca amamos ninguém. Amamos, tão-somente, a ideia que fazemos de alguém”.

“Alguns têm na vida um grande sonho, e faltam a esse sonho. Outros não têm na vida nenhum sonho, e faltam a esse também.”

“O mundo é de quem não sente. A condição essencial para se ser um homem prático é a ausência de sensibilidade”.

“Quem cruzou todos os mares cruzou somente a monotonia de si mesmo. (…) A renúncia é a libertação. Não querer é poder”.

O Desassossego é uma obra aberta por excelência, mutante e inconclusa, que se transforma a cada nova edição, inclusive porque trechos inéditos continuam a ser descobertos no espólio do escritor. Um livro não apenas para ser lido, mas para ser vivido.

 

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Renata de Alcântara Stuani

A jornalista paulistana Renata Stuani  trabalhou em São Paulo e em Brasília e morou em Portugal e no Peru.
Coluna: Escreverá mensalmente sobre a vida e obra de poetas da língua portuguesa

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